Convenção de Viena sobre os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias

Publicado em: 20/04/2010
Natália Semeria Ruschel

A Convenção de Viena sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias (Convenção) unifica e regulamenta as condições de formação dos contratos de compra e venda internacional de mercadorias, determina as obrigações do vendedor e comprador, bem como estabelece medidas em caso de perdas e danos por violação contratual e outras formas de descumprimento. Os principais dispositivos da Convenção serão comentados neste artigo, que irá demonstrar os benefícios a serem trazidos para as relações comerciais internacionais da indústria estabelecida no Brasil e para o desenvolvimento do comércio brasileiro em geral.


Elaborada e concluída em 11 de abril de 1980 durante a Conferência das Nações Unidas sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, sob os auspícios da Comissão das Nações Unidas para o Direito Mercantil Internacional - CNUDMI (UNCITRAL em inglês), [1] a Convenção entrou em vigor em 1º de janeiro de 1988. Atualmente conta com a participação de 74 países, entre os quais os membros do Mercosul (Argentina, Uruguai, Paraguai) e outros principais parceiros comerciais do Brasil, incluindo Estados Unidos, China, União Européia (exceto Portugal e Reino Unido) e Chile.


Apesar de ter participado da Conferência no ano 1980, o governo brasileiro apenas iniciou o procedimento para sua ratificação recentemente, com a aprovação pelo Conselho de Ministros da Câmara de Comércio Exterior (Camex), em dezembro passado, da proposta de adesão pelo Brasil à Convenção, que agora segue para referendo do Congresso Nacional.


Conforme mencionado, a Convenção trata da formação dos contratos de compra e venda internacional de mercadorias, determina as obrigações do vendedor e comprador originárias do contrato, bem como estabelece medidas em caso de perdas e danos por violação contratual e outras formas de descumprimento. Analisando os dispositivos de forma integrada, observa-se a tentativa de dar maior liberdade jurídica às partes envolvidas no contrato, com grande respaldo nos princípios de transparência e boa-fé (objetiva), e evitando, ao máximo, disputas através do sistema judiciário, prevendo formas alternativas para a prevenção e solução de conflitos entre as partes.


A aplicação da Convenção se dá quando ambas as partes que celebram o contrato de compra e venda tenham estabelecimento em Estados diferentes e contratantes (da Convenção), ou quando o Direito Internacional Privado determina a aplicação da legislação nacional de um Estado contratante (ainda que a outra parte tenha estabelecimento em Estado não-contratante). Nesta última situação, por exemplo, uma empresa com estabelecimento no Brasil  (Estado não-contratante) estará sujeita à aplicação da Convenção caso celebre contrato proposto por uma empresa estabelecida na Argentina (Estado contratante da Convenção), já que o artigo 9° da Lei de Introdução ao Código Civil (LICC) determina que seja aplicável a lei do país em que se constituiu a obrigação.


No entanto, o princípio da autonomia da vontade das partes presente na Convenção permite a exclusão de sua própria aplicação (integral) por meio da escolha de aplicação da legislação doméstica de países contratantes ou não-contratantes. Há também a possibilidade de exclusão parcial da aplicação da Convenção através da exclusão de dispositivos específicos, e da derrogação ou modificação dos seus efeitos. [2]


Outro aspecto importante da Convenção pode ser observado nas previsões sobre as fontes de interpretação, que dá ênfase ao seu caráter internacional, e à necessidade de promover uniformidade na sua aplicação. Os princípios gerais que inspiram a Convenção devem ser sempre observados, e na falta dos mesmos, serão observados os princípios pertinentes à lei aplicável em decorrência das regras de conexão do Direito Internacional Privado. Importante ressaltar o destaque dado à boa-fé das partes, que é analisada de forma objetiva. [3]


Ademais, vale frisar que para promover a uniformidade na interpretação e aplicação da Convenção pelas cortes nacionais e órgãos de arbitragem, a CNUDMI divulga compêndios com as decisões de cada caso envolvendo a Convenção, com comentários e jurisprudência sobre a interpretação de cada artigo da Convenção, a fim de divulgar as orientações predominantes para que os órgãos julgadores possam contribuir com a uniformidade do sistema e para que as partes tenham maior previsibilidade, segurança e transparência no momento em que celebram um contrato ou em que buscam uma alternativa para a solução de um conflito. [4]


Com relação às obrigações das partes, salvo o que for expressamente estabelecido ou uma prática tacitamente aceita (usos amplamente reconhecidos e regularmente observados e praticados pelas partes, que são ou deveriam ser de seu conhecimento, no ramo comercial considerado), serão regidas pelos dispositivos da Convenção, a qual também prevê em detalhes os termos de transferência de riscos. Muitas vezes tais termos de obrigações e riscos são expressos no texto do próprio contrato ou na simples indicação do Incoterm utilizado. Porém, seja a compra e venda expressa em um contrato formal ou em uma fatura pro forma, ainda que as partes indiquem as informações essenciais da transação de compra e venda, nem sempre as obrigações das partes e a transferência dos riscos estão descritas em detalhe, o que pode dificultar na resolução de conflitos posteriores. A falta de detalhamento nos termos de compra e venda poderá ser sanada pelas determinações da Convenção.


Este respaldo da Convenção sobre as obrigações e transferência de riscos entre as partes é muito importante para as empresas que operam no comércio exterior baseadas em simples faturas pro forma em razão da dinâmica dos pedidos e da distribuição “Just in time”, uma vez que é comum a falta de tempo para a elaboração de um contrato mais detalhado e analisado pelo setor jurídico da empresa. Assim, as empresas mesmo que apenas baseadas em uma fatura pro forma poderão prever com maior transparência e segurança os seus direitos e obrigações (seja na forma de um acordo verbal, de um email ou de uma fatura pro forma).


As condições de formação do contrato, as principais definições e os prazos também são parte do conteúdo da Convenção e auxiliam na transparência e previsibilidade das partes quando da sua celebração. Além disso, os direitos de terceiro também são mencionados: é proibida a entrega pelo vendedor de mercadorias objeto de direito de terceiros e direito ao comprador a perdas e danos, com exceções caso o comprador seja ou deveria ser ciente do direito do terceiro.


Havendo violação ou resolução contratual, conforme suas respectivas obrigações e direitos, as partes poderão demandar ressarcimento por perdas e danos. Insta observar que no caso de resolução por violação de contrato prevista na Convenção é possível a fixação de prazo suplementar ao devedor e de procedimento alternativo extrajudicial.  Ademais, há prazo máximo de dois anos para que o comprador reivindique problemas com a qualidade e/ou quantidade da mercadoria (guardadas as exceções) [5]; e os critérios para o cálculo e definição do valor indenizatório são bem delimitados (Artigos 74 a 77 da Convenção), ao contrário da legislação brasileira.

Não obstante as obrigações contratuais das partes, é previsto dispositivo que garante a conservação das mercadorias em determinadas circunstâncias. Muitas vezes as mercadorias são abandonadas por uma das partes em razão do suposto descumprimento contratual pela outra parte, por exemplo. Para evitar a deterioração das mercadorias, em separado das obrigações contratuais, a Convenção estipula as responsabilidades quanto à conservação das mercadorias, que será em geral da parte que detém a sua posse, prevendo ressarcimento pela outra parte conforme o caso.


Após este breve comentário sobre as principais orientações da Convenção, podemos concluir que a internalização da mesma no ordenamento jurídico brasileiro trará benefícios às relações comerciais brasileiras de âmbito internacional, bem como estimulará o desenvolvimento de novos negócios por meio da transparência, segurança e previsibilidade da legislação que sustenta os contratos internacionais de mercadorias de empresas estabelecidas no Brasil.

Embora admita a utilização dos meios judiciais, a Convenção estimula os métodos alternativos de solução de conflitos, prevendo formas de conciliação diretamente entre os contratantes. Assim, é claro o incentivo à resolução extrajudicial do conflito ao proibir no art. 45 que árbitros e tribunais concedam prazo adicional ao vendedor inadimplente, depois de exercido pelo comprador o seu direito resolutivo nos termos da Convenção. Ademais, em outros dispositivos as partes e os árbitros encontram preceitos pormenorizados que, afastando o subjetivismo, servem para agilizar a solução do conflito e primam pela fluidez dos negócios internacionais. Outro indicativo da liberdade jurídica das partes é a permissão às partes para acordar por excluir a aplicação total ou parcial da Convenção, e para disciplinar a modificação ou resolução do contrato de acordo com sua vontade.

Portanto, a Convenção de Viena sobre Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias servirá ao Brasil para permitir a fluência dos negócios de empresas estabelecidas no Brasil que comercializam mercadorias internacionalmente de forma segura, previsível e transparente. A uniformidade da legislação em âmbito internacional irá diminuir as incoerências prejudiciais que podem surgir em laudos arbitrais ou decisões de cortes nacionais baseados em normas subjetivas ou em legislações domésticas distintas. A redução destas incoerências contribuirá para uma maior segurança no resultado das relações comerciais internacionais celebradas no Brasil, com reflexo na facilitação comercial e um ambiente mais propício ao investimento direto estrangeiro. A ratificação da Convenção é o caminho necessário para uma posição política do Brasil condizente à imagem declarada pelo próprio governo como sendo o Brasil o líder dos países em desenvolvimento no cenário internacional. Ora, nada mais pró-desenvolvimento do que a ratificação de uma Convenção como esta, a qual já foi ratificada pelos principais parceiros comerciais do Brasil.




[1] A CNUDMI é o principal órgão jurídico das Nações Unidas que trata de fomentar progressivamente a harmonização e unificação das legislações nacionais dos Membros, referentes às relações mercantis internacionais, no intuito de reduzir obstáculos ao comércio internacional através de maior previsibilidade e transparência nas normas.

[2] Sem olvidar dos limites do princípio da autonomia relativos à ordem pública e aos artigos inderrogáveis definidos pela própria Convenção. No Brasil o princípio da autonomia da vontade não é explícito na LICC ou no Código Civil, mas foi expressamente incluído na Lei de Arbitragem (Lei n. 9.307/96).

[3] Intenções e expectativas das partes envolvidas com base no que a parte conhecia ou deveria conhecer no momento da celebração do contrato e, na ausência de declaração ou manifestação da parte, avalia-se as expectativas consideradas razoáveis diante das circunstâncias daquele momento.

[4] Para mais detalhes sobre a jurisprudência: http://www.uncitral.org/uncitral/en/case_law/digests.html

[5] As exceções seria as garantias contratuais e a previsão do Artigo 40 da Convenção.

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