Medida de redução do IPI sob a perspectiva do Comércio Internacional

Publicado em: 29/09/2011

Natália Ruschel



A publicação do Decreto 7.567/2011, que regulamenta a redução da alíquota do IPI para fabricantes nacionais de veículos que cumpram requisitos de conteúdo regional e atividades de produção no Brasil, foi recebida com críticas negativas por parte da indústria automotiva estrangeira e pela comunidade internacional em geral. Este artigo abordará os pontos controversos da medida sob a perspectiva do Comércio Internacional, discutindo possíveis questionamentos perante o Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) da Organização Mundial de Comércio (OMC).


Entre as principais determinações do Decreto 7.567/11, as mais relevantes para a presente análise são duas das condições estipuladas para que os fabricantes possam usufruir da redução do IPI: (1) mínimo de 65% de conteúdo regional (Mercosul) na fabricação de veículos; e (2) realizar, no Brasil, pelo menos 6 das 11 atividades listadas no Artigo 2°, §1°, III, c, em pelo menos 80% de sua produção de veículos sujeitos à redução.


Lançado no contexto do Plano Brasil Maior, conforme anunciado pelo governo, o Decreto é parte das medidas tomadas com o objetivo de defender a indústria nacional e o mercado interno, a partir de incentivos à produção nacional, agregação de valor local e inovação no setor automotivo. A princípio, a medida seria benéfica para toda a cadeia da indústria automotiva nacional, uma vez que estimularia o uso de sistemas, partes e peças nacionais e regionais (Mercosul), bem como "daria um fôlego", diante da menor carga tributária, para os fabricantes nacionais que estão se sentindo lesados pelo volume significativo de veículos de baixo custo importados ou simplesmente montados no Brasil com elevado conteúdo extrazona (de fora do Mercosul). Por outro lado, a indústria automotiva estrangeira e a comunidade internacional em geral veem este tipo de medida como protecionista, com consequências graves para o livre comércio de veículos, e aumento no preço final dos carros importados.


Quanto aos reais efeitos de tal medida, tratando-se do curto prazo, a redução da carga tributária pode influenciar em um preço final mais competitivo aos veículos produzidos no Brasil (seja pelo aumento do preço dos importados, ou pela redução no preço dos nacionais). Ocorre que o ganho de competitividade das fábricas nacionais beneficiadas não é garantido, já que a competitividade depende de vários fatores que vão além da redução temporária, ou permanente, do IPI. Os principais fatores que influenciam na competitividade em longo prazo, por exemplo, são os custos de produção e transação (incluídos o custos de transporte em território nacional), bem como investimentos em inovação, tecnologia, pesquisa e desenvolvimento. Neste aspecto, a previsão do Decreto 7.567/11 que poderia estimular a competitividade da indústria brasileira no longo prazo é o requisito para os fabricantes nacionais de investimento mínimo em atividades de inovação, pesquisa, desenvolvimento e tecnologia, nos termos do Artigo 2°, §1°, III, b. Resta saber se tal condição será devidamente implementada e contínua, independentemente da vigência da redução do IPI, prevista até 31 de dezembro de 2012 (Artigo 2°, caput).


Sob a perspectiva da OMC, a redução da alíquota do IPI nos termos do Decreto 7.567/11 poderia ser questionada perante dois princípios fundamentais: o do Tratamento Nacional e o da Nação Mais Favorecida. Não nos cabe aqui afirmar a existência de violação de normas da OMC sem antes analisar detalhadamente o objetivo da medida de redução do IPI, os termos em que a medida foi elaborada e que é aplicada, e também o impacto real da medida para os veículos importados; análise esta que não é objeto do presente artigo. Os próximos parágrafos irão apenas explicar noções gerais sobre os possíveis questionamentos.


O princípio do Tratamento Nacional, Artigo III do GATT, consiste no compromisso dos Membros em não usar regulamentações e/ou tributos internos como forma de proteção à produção nacional e em não dar aos bens importados tratamento menos favorável do que o tratamento dado aos bens similares produzidos pela indústria nacional. Assim, em linhas gerais, os requisitos para habilitação da fábrica nacional à redução de IPI, que estão diretamente vinculados ao uso de um mínimo de 65% de conteúdo regional na produção dos veículos e à execução de um número mínimo de atividades produtivas no Brasil, poderiam ser interpretados como tratamento menos favorável aos veículos similares importados ou de pouco valor agregado no país, os quais são produzidos por fábricas estrangeiras que não se enquadram no benefício de redução do IPI.


Com relação ao princípio da Nação Mais Favorecida, Artigo I do GATT, a questão poderia ser ainda mais interessante, pois este princípio determina que qualquer benefício ou vantagem conferida por um Membro a bens originários de outro país deverá ser imediatamente estendida para os bens similares de todos os outros Membros da OMC. No caso do Decreto 7.567/11, o Artigo 3° determina que o benefício da redução do IPI dado aos veículos de fabricação nacional será igualmente estendido apenas aos veículos originários do Mercosul e do México, importados por empresa habilitada. Portanto, os demais Membros da OMC não beneficiados pela redução do IPI, eventualmente, poderiam questionar a medida ao interpretarem que o princípio da Nação Mais Favorecida não foi observado.


Importante ressaltar que o aumento da alíquota do Imposto de Importação (II) sobre veículos seria uma forma alternativa e legítima de proteção comercial, uma vez que esta é a única medida regulamentada pela OMC com o fim de proteção de mercados internos, pois é considerada mais transparente do que regulamentações internas esparsas. No entanto, o aumento do II deve respeitar os limites negociados pelo Brasil com os demais membros da OMC, em sua lista de compromissos. Neste caso, a tarifa máxima de II que o Brasil negociou na OMC é de 35% para a maioria dos veículos, incluindo todos aqueles sujeitos ao Decreto 7.567/11. Considerando que a tarifa do II aplicada atualmente no Brasil a estes veículos já é a máxima de 35%, o Brasil não poderia aumentar ainda mais a alíquota do II destes veículos.


O contexto internacional de crise em que as políticas públicas atuais foram formuladas ajuda a entender a iniciativa governamental das medidas, porém não justifica o descumprimento de compromissos do Brasil na OMC. A redução do IPI para fabricantes nacionais foi instituída em meio a uma crise mundial e no receio de um crescimento econômico menor do que o esperado no Brasil. Contudo, medidas protecionistas temporárias e isoladas não costumam ser eficientes no estímulo à competitividade em longo prazo, além de gerarem certo desgaste político com a comunidade internacional, seja com os Membros da OMC, ou com indústrias estrangeiras interessadas em realizar investimentos futuros no país. Enfim, no ambiente de crise internacional muitas vezes reina o princípio do "salve-se quem puder", o qual é considerado um "mal necessário" por muitos países, mas que não é sustentável. Portanto, fatores fundamentais para a competitividade da indústria nacional em longo prazo como investimentos em tecnologia, pesquisa, inovação, capacitação e infraestrutura, e, igualmente, redução geral da carga tributária, burocracia e corrupção não podem ser ignorados, nem pelo setor público, nem pelo setor privado no Brasil.

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