Política Automotiva Comum Brasil – Argentina e o redutor de 40% do imposto de importação de autopeças. Controvérsias quanto à in

Publicado em: 15/10/2009
Alexandre Lira de Oliveira

A Política Automotiva Comum (PAM), entre Brasil e Argentina, estabelecida pelo Acordo de Complementação Econômica nº 14 (ACE 14), tem recebido destaque desde a negativa da Argentina, no final de 2005, em aderir ao livre comércio bilateral de produtos automotivos originários dos dois países a partir do início de 2006, como era previsto pelo 31º Protocolo Adicional (PA) ao ACE 14.

Com a restrição ao livre comércio, as disposições do 31º PA, que possibilita o tráfego de produtos automotivos originários com 100% de preferências tarifárias respeitado o flex (fator máximo de desequilíbrio do fluxo comercial) de 2,6, entre outras, foram prorrogadas pelos 32º e 33º PA ao ACE 14 até o final de junho de 2006, enquanto é negociado o teor da nova PAM, a vigorar a partir de julho de 2006. Tem havido muitos pontos de desentendimento, sendo que o Brasil busca a determinação de uma data para o livre comércio – que, segundo especula-se, seria 2010 – e a Argentina quer garantir a recuperação de sua indústria, gravemente abalada pelos anos de crise.

Tem gerado discussões a pretensão da Argentina em fixar o flex por empresa montadora de veículos, como forma de restringir as exportações de veículos do Brasil para a Argentina por empresas que não produzem automóveis em solo platino. De outro lado, grande parte do setor privado brasileiro pleiteia que seja mantido o redutor de 40% do imposto de importação de autopeças, instituído pela Lei 10.182/01, benefício fiscal alheio à PAM, que existe no Brasil à margem do disposto no 31º PA – norma esta que previa a extinção do redutor no início de 2005. A manutenção deste redutor tem causado reclamações por parte dos argentinos, e foi o assunto na pauta das empresas situadas no Brasil importadoras de autopeças para sua produção.

Durante os quatro meses compreendidos entre 18.10.2005 e 24.2.2006 as empresas industriais situadas no Brasil fabricantes de veículos automóveis e componentes, autopeças e sistemas automotivos que utilizaram o benefício na importação de componentes foram ameaçadas de autuação fiscal pela Secretaria da Receita Federal (SRF), devido à controvérsia quanto à eficácia de normas veiculadas por tratado internacional conflitantes com lei federal, fiscalmente mais benéfica aos contribuintes. Os números levantados pela imprensa especulavam quanto à existência de um passivo de 9 bilhões de reais para as empresas montadoras de veículos e fabricantes de autopeças.

Pela Nota Técnica Conjunta Coana/Cosit nº 98, de 22.8.2005 e Parecer PGFN/CAT nº 1.442, de 20.9.2005, a SRF e Procuradoria Geral da Fazenda Nacional demonstraram seu entendimento quanto à inaplicabilidade do redutor do imposto de importação de autopeças, estabelecido pela Lei nº 10.182, de 12.2.2001, desde 16 de maio de 2001, que estaria “suspenso” por força da publicação do Decreto nº 3.816, que dispõe sobre a execução do 30º PA ao ACE 14.

Dessa forma, as empresas que se beneficiaram da redução do imposto de 16 de maio de 2001 a 18 de outubro de 2005 – dia da veiculação da Notícia SISCOMEX 54, a partir da qual o Sistema Integrado de Comércio Exterior deixou de autorizar registro das declarações de importação de autopeças com a redução do tributo – teriam que recolher os valores reduzidos desde 2001, acrescidos de multa e juros, além de terem sido subitamente impedidas de utilizar o benefício fiscal, que era considerado em seus custos.

Em 24.2.2006 a situação foi revertida pela SRF, com a publicação do Ato Declaratório Interpretativo nº 1, que alterou o entendimento da Fazenda Nacional, admitindo, dessa vez, a vigência e eficácia do redutor do imposto de importação de autopeças previsto na Lei 10.182/01. Não se pode precisar a causa exata da revisão do posicionamento fazendário, mas a controvérsia trouxe à discussão os requisitos constitucionais para integração ao ordenamento jurídico brasileiro de um tratado internacional.

Em meio às disputas judiciais preventivas que se desenrolaram no período em que a SRF estava determinada a proceder com a autuação fiscal, foi retomada esta questão jurídica, que já vem sendo estudada há muito por juristas de renome e pela jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Isto porque, o ACE 14 e seus PA nunca foram referendados pelo Congresso Nacional, tendo sido simplesmente publicados no Diário Oficial da União apensos a decreto presidencial, sem prévia aprovação congressual por decreto legislativo.

O entendimento quanto à validade do tratado internacional no plano interno sem a aprovação do texto por decreto legislativo divide a doutrina há décadas, havendo uma corrente que afirma a validade dos acordos do Executivo no sistema jurídico brasileiro [1], composta por Hildebrando Accioly, Levy Carneiro, João Hermes Pereira Araújo e Geraldo Eulálio Nascimento Silva [2]; e a outra corrente, que nega a possibilidade de ratificação sem anterior referendo parlamentar, seguida por Haroldo Valladão, Marota Rangel, Afonso Arinos, Pontes de Miranda, Themístocles Cavalcante e Carlos Maximiliano.

A liberdade de negociação internacional pelo Poder Executivo é alvo de mudanças conforme o contexto político e econômico. Conforme o magistério de Mariângela Ariosi “Na Grécia e em Roma Antigas, os tratados precisavam da ratificação de um Parlamento (...). Nas Idades Média e Moderna, desenvolve-se a teoria dos plenos poderes (...). A importância da ratificação para a validade dos tratados internacionais foi influenciada, sobretudo, pelo art. I da Constituição Francesa de 1794, e pela adoção generalizada, por parte dos Estados, de um sistema constitucional que restringia os poderes do Executivo na conclusão dos tratados [3]”. Nessa linha, previa a Convenção de Havana sobre Tratados, de 1928, que estes somente seriam obrigatórios depois de ratificados, mesmo possuíssem os negociadores plenos poderes.

No passado mais recente, com o final da Guerra Fria e a intensificação das relações internacionais, inverte-se outra vez a tendência, outorgando-se, em Direito Comparado, maior liberdade negocial ao Poder Executivo, o que levou Celso de A. Mello a afirmar que: “A conclusão que podemos chegar é que a ratificação, no seu sentido tradicional de ato do Executivo após a aprovação do tratado pelo Legislativo, se encontra em decadência [4]”. Assim sendo, a Convenção de Viena, de 1969, suplanta a obrigação de ratificação para validade do tratado, passando esta ratificação a poder ser substituída pela aceitação, aprovação, adesão ou assinatura de agentes munidos de Cartas de Plenos Poderes, exceto na hipótese de o próprio Tratado prever expressamente a necessidade de ratificação.

José Sette Câmara ao estudar os acordos executivos do Brasil, afirmou: “O fato é que se consolidou uma norma costumeira, que legitimou os acordos executivos ao longo de quase um século de prática constante e coerente, sem que jamais o legislativo contestasse a iniciativa do Poder Executivo na conclusão, promulgação e publicação de acordos em forma simplificada, sem a sua concomitante aprovação. O silêncio complacente do Congresso afasta qualquer dúvida sobre a legalidade do processo de conclusão de acordos executivos, sem necessidade de aprovação legislativa” [5]. Afirma ainda, Câmara: “[...] parece evidente que o Congresso Nacional só tem competência exclusiva para decidir definitivamente sobre tratados e atos internacionais quando esses acarretem encargos e compromissos gravosos ao patrimônio nacional. A decisão sobre qualquer outro tratado, por maior que seja a sua importância, passa a ser da competência exclusiva do Executivo. Se o patrimônio nacional não for de qualquer modo atingido, o Executivo tem as mãos livres para ratificar qualquer tratado independentemente de aprovação legislativa” [6]. Cançado Trindade aduz que se o Congresso “insistir em sustentar posição contrária, haverá então ele – que mal encontra tempo para examinar os “tratados e convenções” submetidos ao seu crivo -, que assumir a responsabilidade pelas conseqüências de sua atitude” [7].

Por mais simpáticos que sejamos ao entendimento exposto, que se alinha às necessidades negociais internacionais públicas cada vez mais freqüentes e necessárias, não podemos deixar de considerar os limites estabelecidos pela Constituição Federal, que impõe a obrigação do referendo parlamentar. Na lição de José Souto Maior Borges, o tratado somente adquire eficácia plena depois de ratificação precedida de referendo do Congresso: “a competência congressual para referendar o tratado funciona como uma condição suspensiva de sua eficácia plena. Parcialmente, como visto, deu-se a eficácia – o efeito vinculativa das partes ao pactuado – não, porém, em sua plenitude, dependente do próprio referendo. É o que claramente deflui da dição constitucional, art. 49, I, em cujos termos compete exclusivamente ao Congresso Nacional resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional. Antes da enunciação da competência presidencial para celebrar os tratados, a CF, no seu artigo 84, VIII, já sujeitara esses atos ao referendo do Congresso Nacional. A competência congressual envolve, como exposto, o poder de referendar ou não o tratado celebrado pelo Executivo. [8]”

Seguindo o arquétipo constitucional, o referendo é o que autoriza o Presidente da República a ratificar o tratado. Alberto Xavier esclarece o rito constitucionalmente exigido para a celebração do tratado, que inicia-se na fase das negociações entre os representantes, fase que segue até a autenticação do texto que será submetido à ratificação. Mesmo se a autenticação se revestir formalmente na assinatura de plenipotenciário, para eficácia plena no ordenamento jurídico brasileiro é necessária o cumprimento do iter da fase de celebração. “A fase da celebração inicia-se com o referendo do Congresso Nacional, o qual tem por objetivo o texto autenticado e por conteúdo autorizar o Presidente da República a ratificar o tratado. O referendo limita-se a alternativa da permissão ou rejeição da ratificação, não sendo admissível qualquer interferência no conteúdo do tratado. O referendo do Congresso nacional reveste, assim, a natureza de uma autorização para ratificação. A reiterada prática constitucional brasileira revela qual a forma adotada para o referendo é o decreto legislativo. [9]”

Pelo exposto, denota-se que as exigências constitucionais brasileiras para a celebração de tratados vão além do previsto na Convenção de Viena, de 1969, posto que mesmo em havendo a autenticação do texto pactuado por plenipotenciário, a eficácia interna no Brasil depende de referendo congressual e ratificação presidencial. O constitucionalista Alexandre de Moraes, em estudos comparados, mostra que a “a necessidade de ratificação pelo Parlamento dos atos e tratados internacionais, consagrada no art. 49, I, da Constituição Federal segue a tendência do direito comparado. Assim, verifica-se essa regra, por exemplo, nos arts. 93 e 94, da Constituição espanhola de 1978; no art. 75, item 22, da Constituição da Nação Argentina, inclusive após a reforma de 1994; no art. 85, item 5 e 89, da Constituição Suíça; art. 59, item 2, da Lei Fundamental alemã de 1949; arts. 48 e 50 da Lei Constitucional Federal da Áustria, de 1929; 167, item 2, da Constituição da Bélgica, de 1994; art. 55 da Constituição da República francesa de 1958; art. 28 da Constituição da Grécia de 1975 [10]”.

A Constituição brasileira exige que os tratados internacionais sejam submetidos ao Congresso Nacional para que adquiram plena eficácia interna. Este procedimento prejudica a agilidade necessária às negociações internacionais, visando assegurar a vontade soberana dos cidadãos, representados pelo Parlamento. O ideal seria que houvesse alteração na Constituição Federal, de forma a estabelecer situações em que poderia haver a livre pactuação pelo Poder Executivo. Da forma como hoje se procede, não há segurança jurídica quanto à legislação a ser seguida em casos de antinomia, redundando em situações como a vivida pelo Setor Automotivo entre outubro de 2005 e fevereiro de 2006.

Não havendo essa alteração constitucional e insistindo o Poder Executivo em considerar tratados internacionais de grandes inovações como “acordos executivos”, sem submetê-los ao Poder Legislativo, viveremos essas situações de incerteza que podem acabar sendo revertidas no Poder Judiciário, cujo entendimento é o mesmo que o do autor, conforme texto extraído de voto do Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, na Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.480-DF, em 4.9.1997, em que foi relator: “O exame da vigente Constituição Federal permite constatar que a execução dos tratados internacionais e a sua incorporação à ordem jurídica interna decorrem, no sistema adotado pelo Brasil, de um ato subjetivamente complexo, resultante da conjugação de duas vontades homogêneas: a do Congresso Nacional, que resolve, definitivamente, mediante decreto legislativo, sobre tratados, acordos ou atos internacionais (CF, art. 49, I) e a do Presidente da República, que, além de poder celebrar esses atos de direito internacional (CF, art. 84, VIII), também dispõe - enquanto Chefe de Estado que é - da competência para promulgá-los mediante decreto.”.

[1] ARIOSI, Mariângela. “Conflitos entre Tratados Internacionais e Leis Internas”. p. 139

[2] “Essa corrente afirma que seria dispensável a aprovação do Legislativo nos seguintes acordos: a) sobre assuntos que sejam da competência privativa do Poder Executivo; b) os concluídos por agentes ou funcionários que tenham competência para isso, sobre questões de interesse local ou de importância restrita; c) os que consignam simplesmente a interpretação de cláusulas de um tratado já vigente; d) os que decorrem, lógica e necessariamente, de algum tratado vigente e são como seu complemento; e) os de modus vivendi”- nota de rodapé em ARIOSI, op. cit. p. 139.

[3] ARIOSI, op. cit., p.134.

[4] MELLO, Celso de A.. “Direito Constitucional Internacional”. p. 178.

[5] CÂMARA, José Sette. A Conclusão dos tratados internacionais e o Direito Constitucional Brasileiro.p 66.

[6] CÂMARA, Op. Cit. p.73.

[7] TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Fundamentação Jurídica da prática constitucional do Itamaraty em matéria de celebração de Acordos Internacionais. Parecer CJ/161 do Consultor Jurídico do Ministério das Relações Exteriores, de 3 de abril de 1989, p.10

[8] BORGES, José Souto Maior. “Curso de Direito Comunitário”. p. 240.

[9] XAVIER, Alb erto. “Direito Tributário Internacional do Brasil”.p. 101.

[10] MORAES, Alexandre de. “Tratados Internacionais na Constituição de 1988”in “Tratados Internacionais na Ordem Jurídica Brasileira”. p. 40.
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