Projeto Harpia

Publicado em: 03/10/2009

Alexandre Lira de Oliveira


Em busca da modernização da legislação e procedimentos aduaneiros, está em fase de implantação pela Coordenação Geral de Administração Aduaneira ("Coana") da Receita Federal do Brasil ("RFB") o Projeto Harpia.


Consistente na utilização de um sistema informatizado de análise de risco e "inteligência artificial" aplicada às operações de comércio exterior, o Projeto Harpia tem por finalidade a prevenção de fraudes e destinação dos esforços fiscais aos processos com maiores indícios de ocorrência de irregularidades, especialmente ao que se refere a sub–faturamento e pirataria.


Os esforços da RFB pela "modernização da legislação aduaneira", decorrentes de compromissos assumidos perante a Organização Mundial das Aduanas ("OMA"), concernentes à redução dos prazos de desembaraço aduaneiro, vêm sendo desenvolvidos há alguns anos, tendo encontrado alguns obstáculos pelo caminho. Em 2005 foi apresentado à Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 6.370, de autoria do Ministério da Fazenda, com a seguinte ementa "Dispõe sobre a movimentação e armazenagem de mercadorias importadas ou despachadas para exportação, o alfandegamento de locais e recintos, a licença para explorar serviços de movimentação e armazenagem de mercadorias em Porto Seco, altera a legislação aduaneira e dá outras providências." As alterações relativas à "modernização da legislação aduaneira" estão contidas nessas "outras providências".


Desnecessário comentar o enorme conteúdo político envolvido na discussão jurídica que se apoderou dos trabalhos, tendo em vista que se propunha alterar o regime de concessão dos portos secos – que passariam a ser chamados de "Centro Logístico e Industrial Aduaneiro". Essas discussões acabaram prejudicando o andamento do projeto de lei, e, por conseqüência, também prejudicadas as outras alterações na legislação aduaneira.


Tentando resolver o impasse de forma pragmática, mesmo que não democrática, o Poder Executivo, pela Presidência da República, fez publicar em agosto de 2006 a Medida Provisória 320, que tratava dos mesmos assuntos do Projeto de Lei 6.370. Novamente foi derrubada a expectativa da administração pública, que viu a medida rejeitada pelo Congresso Nacional, pelo Ato Declaratório do Senado 1/2006.


Resignado, o Poder Executivo alterou sua estratégia de promoção da "modernização da legislação aduaneira" e Receita Federal do Brasil tratou de realizar as mudanças independentemente de ato legal, isto é, de lei aprovada pelo Congresso Nacional. Nessa esteira foram publicados alguns atos normativos que têm gerado mudanças nos procedimentos aduaneiros.


A IN SRF 680/06 é um exemplo de norma que trouxe modernização à legislação aduaneira em diversos aspectos. Um exemplo dessas simplificações foi a melhoria nos procedimentos de retificação de declarações de importação ("DI") após o desembaraço aduaneiro. Se antes cada unidade tinha competência para determinar a forma de apresentação dos processos de retificação de DI, pela inexpressividade da norma que anteriormente tratava do assunto (IN SRF 206/02, art. 46), com o advento da nova regulamentação foi estabelecido um procedimento uniforme para todas as unidades da RFB, com uma diferenciação entre (a) processos em que se faz necessária a produção de provas que justifiquem as alterações pleiteadas – nos casos de alterações de quantidade e natureza das cargas importadas – daqueles em que (b) apenas se altera o tratamento tributário aplicado – matéria de direito.


Outro exemplo mais recente e que tem causado diversos problemas aos operadores de comércio exterior que atuam em operações aquaviárias, é a IN RFB 800/07, que instituiu o Siscomex Carga, sistema informatizado que irá padronizar os procedimentos aduaneiros da RFB no sistema portuário nacional e integrará outros sistemas, como Siscomex Importação, Siscomex Exportação, Siscomex Trânsito e o Mercante. Segundo é noticiado, o Siscomex Carga permitirá à RFB atuar previamente na fiscalização das cargas, possibilitando intervenções mais precisas no combate às fraudes no comércio exterior, facilitando o fluxo das cargas regulares, sejam importação ou exportação.


Mesmo antes de explicarmos pormenorizadamente o que é o Sistema Harpia, que é afinal o tema deste texto, vale desde já ressaltar o intuito da RFB com a "modernização" pretendida, que é reduzir fraudes no comércio exterior, especialmente aquelas que prejudicam a arrecadação tributária, que é sempre um tema de forte apelo, especialmente no Brasil.


Diversos esforços informatizados têm permitido a melhoria de controles e a resultante redução de fraudes nas operações de comércio exterior, que podem ser divididas em três gêneros principais: (i) corrupção; (ii) descaminho; e (iii) subfaturamento. A seguir relacionamos cada uma dessas fraudes com o sistema de controle aduaneiro da RFB que serve para coibi-las:


(i) Corrupção – A implantação do Siscomex – módulo exportação em 1993 e o módulo importação em 1997 – é o marco da informatização dos procedimentos aduaneiros brasileiros. Com o registro eletrônico das operações geram-se dificuldades à ação de autores de crimes contra a administração pública, pois cria-se a rastreabilidade necessária, reduzindo a ocorrência de ações humanas que possam modificar situações públicas em interesses próprios;


(ii) Descaminho – Com o Siscomex Carga será possível à RFB controlar o trânsito de embarcações pelo território nacional, da primeira atracação até a última desatracação de portos alfandegados do País, de forma a dificultar a entrada e saída de produtos sem sujeição às normas aduaneiras e tributárias que regem as operações de comércio exterior. Nas operações aéreas o MANTRA (Sistema Integrado de Gerência do Manifesto, do Trânsito e do Armazenamento) já tem essa função. Com o investimento tecnológico, em médio prazo será possível à RFB realocar recursos dos portos para as fronteiras terrestres, que cada vez mais serão as áreas mais sensíveis às ações criminosas;


(iii) Subfaturamento – Fiscalmente, pouco adianta impedir a possibilidade de operações em zonas primárias terem seus registros apagados, na hipótese do item (i), ou que sejam impedidos os navios de atracar e desatracar sem controle aduaneiro, na hipótese do item (ii), se os sistemas que a RFB dispõe forem incapazes de averiguar o valor aduaneiro adequado para determinado tipo de mercadoria. Para fechar o cerco às operações fraudulentas é necessário o controle da valoração aduaneira. Isto porque, via de regra e sempre que possível, o imposto de importação é calculado mediante a aplicação de alíquotas em base imponível, tributação conhecida como ad valorem. Dessa forma, se há subfaturamento, reduz–se o valor aduaneiro da mercadoria importada, base de cálculo da exação, resultando em imposto recolhido a menor. Por isso a implantação do Sistema Harpia, que pretende criar – pela aplicação de seu conteúdo de "inteligência artificial" – cadastros com preços médios para cada mercadoria importada, de forma a determinar se o preço praticado é aceitável e, em caso contrário, determinar a análise de valor aduaneiro para a mercadoria que demonstrar discrepâncias dos preços médios praticados no mercado.


No reino animal "A Harpia, também conhecida como Gavião–real, é a maior ave de rapina do Brasil e do mundo. Além de maior, é considerada uma das mais interessantes e raras aves, pois vive solitária, exceto na época de acasalamento, e exige uma extensa área para sobreviver (cerca de 50 km2 de floresta para cada ave). A característica principal – também presente em todas as aves de rapina diurnas – é a profundidade da visão. O poder de resolução da vista do gavião chega a ser oito vezes mais potente que o do homem. Mas, como nem tudo é perfeito, a mobilidade do olho na órbita é reduzida, o que obriga a ave a virar constantemente a cabeça para adquirir noção do conjunto." (pesquisa realizada em 18.4.2008 em Link)


Decerto houve alguma simpatia quanto às características da ave na escolha do nome do sistema, pois trata-se de temível predador, de visão apurada, mas que depende de outros fatores além de seus olhos para enxergar – no caso da ave há dependência de movimentos da cabeça pela reduzida, no caso do Sistema Harpia, como veremos a seguir, há dependência da inserção pelo setor privado de informações sobre as mercadorias importadas, para que possa a "inteligência artificial" funcionar.


Outra acepção ao substantivo “Harpia” foi conferida pela mitologia grega em que a harpias “eram filhas de Taumas e Electra e, portanto, anteriores aos olímpicos. Apareciam ora como mulheres sedutoras ora como horríveis monstros, que procuravam sempre raptar o corpo dos mortos, para usufruir de seu amor, simbolizando as paixões obsessivas bem como o remorso seguido à sua satisfação. Eram três: Aelo (a borrasca), Ocípite (a rápida no vôo) e Celeno (a obscura). Segundo um de seus mitos, as Harpias mantinham uma maldição sobre o rei da Trácia, Fineu. A pedido do rei, foram perseguidas pelos argonautas e, aprisionadas, obtiveram em troca da vida a promessa de não mais atormentá–lo e então, refugiaram–se numa caverna da ilha de Creta.” (pesquisa realizada em 22..4.2008 em Link)


“Impetuosas e brutais como a tempestade, as Harpias são – este é o sentido do seu nome – raptoras com garras fortes. Arrancam as almas dos mortos dos seus corpos, e enviam–nas para o Hades.” (pesquisa realizada em 22..4.2008 em Link )


harpy

Imagem extraída em 22.4.2008 de Link

Parece-me que a RFB se inspirou mais no reino animal que na mitologia grega para a escolha da sigla que substantiva o Sistema de Análise de Risco e Inteligência Artificial Aplicada ("Sistema Harpia"), tendo em vista a excessiva brutalidade do ser mitológico.


Consistente num conjunto de aplicativos desenvolvido pela RFB – por seu Serviço Federal de Processamento de Dados ("Serpro´"), juntamente com o Instituto de Tecnologia Aeronáutica ("ITA") e com a Universidade Estadual de Campinas ("Unicamp"), o Sistema Harpia permitirá uma análise de risco aduaneiro a partir da seleção de critérios e atributos mínimos de descrição e identificação de mercadorias a serem informados pelos importadores brasileiros.


Os importadores, pelas entidades de classe que os representam, ficaram incumbidos de apresentar à COANA descrições das mercadorias que importam com atributos de valor. Isto é, além da descrição da mercadoria que permita identificá-la em conformidade com a Nomenclatura Comum do Mercosul ("NCM") – que é uma obrigação do importador –, também haverá a obrigação de descrever a mercadoria com menção aos atributos de valor que permitam a singularização de cada espécie de mercadoria generalizada pelo subitem da NCM. Essas informações apresentadas pelas entidades de classe serão aglutinadas num módulo do Sistema Harpia, chamado de "Catálogo de Produtos".


Dessa forma, para o mesmo subitem da NCM haverão diversas descrições previstas no catálogo de produtos do Sistema Harpia, que variarão de acordo com atributos de valor que lhes sejam peculiares. Num exemplo, podemos pensar em dois modelos de óculos de sol, classificados ambos sob a NCM 9004.10.00: o primeiro um óculos italiano de grife renomada, hastes de acetato e tratamentos e filtros nas lentes; o segundo, um óculos de sol fabricado na Tailândia e vendido a quilo, com hastes de plástico e sem tratamentos ou filtros nas lentes.


Atualmente, os dois produtos, apesar de diversos, recebem a mesma classificação fiscal pela NCM e também a mesma descrição, pois são óculos de sol. Com a entrada em vigor do Sistema Harpia, o importador ficará obrigado a evidenciar pela descrição padronizada, inserta no “Catálogo de Produtos”, de que espécie de óculos se trata. Dessa forma, se trouxer o produto italiano e descrevê-lo sem observar seus atributos, estará prestando declaração falsa, sujeito aos rigores da lei.


Por enquanto não houve a publicação de nenhuma norma que trate do Harpia, mas é prevista pela Coana a publicação de instrução normativa que estabeleça a utilização do Sistema e que revogue a IN SRF 80/96, que trata da nomenclatura de valor aduaneiro e estatístico (“NVE”). Pode-se concluir que a NVE não cumpriu a função que teve – pela constante inobservância pelos importadores de sua obrigatoriedade – e que será substituído pelo Sistema Harpia.


No dia 2 de julho de 2007, a RFB realizou na FIESP, fortalecendo a cooperação entre as entidades, a apresentação do Sistema Harpia, solicitando especialmente que, pelos sindicatos e associações afiliadas à Federação, fossem fornecidas as características que são relevantes atributos de valor para a infinidade de produtos importados no Brasil.


Em 10 de março de 2008 encerrou-se a primeira recepção de informações pela Coana, sendo que poucas entidades forneceram as informações requeridas.


Existe no mercado uma preocupação de que possa a RFB utilizar as informações recebidas para verificar importadores que tenham utilizado classificações fiscais e descrições incorretas e aplicar-lhes multas aduaneiras. Não creio que seja essa a pretensão da RFB com a solicitação: para funcionamento adequado do Sistema Harpia, o setor público necessita das informações do setor privado e, além disso, a RFB não tem quadros disponíveis para esmiuçar o histórico de cada importador em busca dessas irregularidades.


Embora o Sistema Harpia dependa de informações a ser prestadas pelo setor privado, é certo que a RFB não aceitará o silêncio dos importadores, e instituirá descrições pelo seu entendimento em tal hipótese, o que acarretará complicações nos processos de importação, pelo desconhecimento técnico do setor público quanto aos produtos importados.


Aos importadores que não praticam fraudes é positiva a implantação do Sistema Harpia, pois o mesmo reduzirá a incidência de conferência aduaneira em processos que sejam regulares e controlará a concorrência desleal praticada pelas importações irregulares.

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