Os possíveis impactos do julgamento da ADC Nº 49 na tributação pelo ICMS

Por Luiz Henrique Renattini

Em abril deste ano, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) nº 49. Essa ação foi ajuizada pelo governador do estado do Rio Grande do Norte para declarar válidos dispositivos da Lei Kandir (lei nacional do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços ou ICMS) que respaldavam a tributação da transferência de mercadorias entre filiais.

Na ocasião, a ação foi julgada improcedente. Portanto, o efeito prático dessa decisão foi o de declarar inconstitucionais esses mesmos artigos da lei.

Entre as disposições declaradas inconstitucionais estão: a) a que dispõe ser autônomo cada estabelecimento do mesmo titular (artigo 11, §3º, II); b) a que considera ocorrido o fato gerador no momento da saída da mercadoria, ainda que para estabelecimento do mesmo titular (artigo 12, I, final); e c) a que disciplina a base de cálculo do imposto na saída de mercadoria com destino a estabelecimento do mesmo titular (artigo 13, §4º).

Sobre essas duas últimas consequências, não há muito o que comentar. Afinal de contas, mesmo antes da edição da Súmula STJ 166 — "não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria de um para outro estabelecimento do mesmo contribuinte" —, em 1996, a jurisprudência dos tribunais tem se posicionado nesse sentido.

Contudo, a declaração de inconstitucionalidade do dispositivo que garantia a autonomia de cada um dos estabelecimentos da pessoa jurídica pegou a todos de surpresa. Quanto mais porque, ao fazê-lo, o Supremo Tribunal Federal não cuidou de declarar inconstitucional a possível interpretação que vinha sendo feita pelos estados, em sentido de respaldar a cobrança do imposto na mera transferência de mercadorias entre estabelecimentos.

Ao fazê-lo, a Suprema Corte declarou inconstitucional a própria ficção que garante autonomia a cada estabelecimento. E, a partir daí, as consequências que podem advir são das mais diversas.

Ninguém sabe ao certo a extensão dos efeitos dessa decisão. Veja-se que se um contribuinte destina a estabelecimento seu localizado em outro estado mercadorias que serão objeto de exportação, deverá ele aproveitar os créditos de ICMS no Estado de origem da operação? Ou poderá, eventualmente, transferi-los ao estado de destino, podendo optar por aproveitar o saldo credor acumulado do imposto naquele que lhe apresentar condições menos restritivas para transferência e uso desses créditos?

Outro ponto importante de ser considerado são os possíveis impactos dessa decisão sobre o julgamento que definiu o estado titular do imposto nas operações de importação (Tema STF 520).

Na ocasião desse julgamento definiu-se como titular o estado no qual estivesse o estabelecimento que daria efetiva destinação econômica à mercadoria, independentemente de o desembaraço ter sido realizado por estabelecimento do mesmo titular situado em outro estado. Agora, com a declaração de inconstitucionalidade da autonomia dos estabelecimentos e afirmação da unidade da pessoa jurídica, exsurge o questionamento sobre se a investigação econômica do emprego da mercadoria dentro da cadeia produtiva realmente deveria impactar no local do recolhimento do tributo.

Em situação semelhante a essa nós encontramos a dos depósitos fechados, que são constituídos pelos contribuintes para abrigar os seus estoques.

Historicamente, as administrações fazendárias têm visto os depósitos fechados como extensão física do estabelecimento em efetivo funcionamento no seu território, a partir do que julgavam haver transferência de mercadoria quando o remetente era situado em outro estado.

Com essa recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que extingue a autonomia dos estabelecimentos, passa-se a questionar a possibilidade de os contribuintes constituírem depósitos fechados em estados em que não atuam, devendo a tributação continuar sendo realizada como se a saída jurídica da mercadoria (venda) continuasse sendo originada pelo estabelecimento remetente ao depósito fechado, com arrecadação ao seu estado de atuação.

Como se nota, são questões da mais alta importância e que carecem de definição após essa polêmica decisão do Supremo Tribunal Federal.

Diante das muitas incertezas que circundam os efeitos dessa decisão, há, no entanto, de ser destacada a astúcia fazendária; que pretende emplacar o entendimento de que a saída (física) da mercadoria sem débito do imposto acarretaria a necessidade de estorno dos créditos das entradas, em conformidade com o mandamento constitucional do artigo 155, §2º, II.

Essa tentativa foi engendrada por via de embargos de declaração, que aguardam julgamento pela corte. Mas a perspectiva de êxito dessa tentativa é remota, tendo em vista que ela continua partindo do erro conceitual de vislumbrar no mero deslocamento físico de mercadoria evento apto a reclamar a incidência do ICMS.

Após o julgamento de mérito da ADC nº 49, fica, definitivamente, assentado que a mera transferência de mercadorias entre estabelecimentos de um mesmo titular não é condição apta a atrair a incidência do imposto.

Seja como for, o julgamento desses embargos de declaração será importante para afastar, em definitivo, essa equivocada interpretação fazendária. Por outro lado, não há expectativa de que esse julgamento possa esclarecer sobre todas as possíveis situações que decorrerão dos efeitos dessa decisão.

Ao que tudo indica, o julgamento de mérito da ADC nº 49 terá sido o marco para a introdução de novos conflitos no âmbito do ICMS; quando, na verdade, deveria servir de motivo adicional para destravar a tão comentada reforma tributária.

Afinal de contas, não é sensato que um tributo de repercussão nacional tenha a sua regência legislativa atribuída à competência de 27 entes políticos. Mas, quando a questão da arrecadação entra em pauta, fica difícil de prevalecer a sensatez nas discussões.

Fonte: https://www.conjur.com.br/2021-ago-09/renattini-adc-49-impactos-tributacao-icm

Nós usamos cookies e para melhorar a sua experiência em nossos serviços, personalizar publicidade e recomendar conteúdo de seu interesse. Ao continuar navegando, você concorda com nossa Política de Privacidade
Fechar