Regras de Origem no setor automotivo: Mercosul, NAFTA e União Européia

Publicado em: 23/02/2010


Natália Semeria Ruschel


Regras de origem são normas que determinam critérios para o exame da nacionalidade de um produto.  De acordo com a sua finalidade, as regras podem ser consideradas ‘preferenciais’ ou ‘não-preferenciais’. As primeiras, foco deste artigo, são utilizadas para a aplicação de preferências tarifárias a que o produto está sujeito caso seja considerado originário de determinado país ou região; já as regras não-preferenciais são utilizadas para as demais finalidades de controle administrativo aduaneiro, incluindo, controle de produtos que sofrem medidas anti-dumping, quotas tarifárias ou qualquer outra medida restritiva relacionada à origem do produto, bem como coleta de dados para fins estatísticos.


O objetivo deste artigo é fazer um comparativo geral sobre as principais regras de origem preferenciais relacionadas ao setor automotivo, um dos setores mais complexos e detalhados em termos de critérios e cálculos para determinação da origem, explicando as principais diferenças entre as normas estabelecidas pelo Mercosul, Acordo Norte Americano de Livre Comércio (NAFTA) e União Européia (UE).


O setor automotivo tem como característica intrínseca a distribuição e terceirização do processo produtivo de partes e peças, montagem de conjuntos, subconjuntos, bem como do veículo em si, em diversos países. Esta característica dificulta a formulação de regras de origem adaptadas às variações no processo produtivo e também aos interesses de cada país em manter certo nível de proteção à indústria doméstica. Dessa forma, as regras de origem acabam sendo mais detalhadas e extensas a fim de preverem todas as possibilidades de composição, processamento e montagem do produto; evitando que sejam utilizadas de forma inadequada e resultem em mera distorção do comércio regional.


A União Européia, por ser uma união aduaneira de fato e de direito, não possui regras de origem preferenciais aplicáveis entre os países membros (duty free). No entanto, para os acordos da UE com outros países ou regiões as regras de origem preferenciais são essenciais na determinação dos produtos sujeitos à tarifa reduzida. A UE harmonizou as regras gerais de todos os seus acordos, mantendo apenas as regras específicas necessárias para atender às particularidades e interesses de alguns setores, conforme o fluxo comercial com as demais partes contratantes.


As regras de origem para produtos automotivos fazem parte de uma lista padrão que estipula requisitos mínimos específicos de elaboração e transformação ou processamento para que sejam reconhecidos como originários[1]; para alguns produtos mais sensíveis no mercado europeu, há regras exclusivas e detalhadas nos anexos de cada acordo, como no caso do acordo entre UE e México[2], em que a maioria dos itens classificados no Sistema Harmonizado entre os capítulos 84 e 90 (produtos automotivos) limitam o valor do conteúdo de materiais não-originários em 40% ou 30%[3] do valor ex-fábrica do produto manufaturado. Importante observar que para o cálculo do conteúdo regional, a UE não considera o valor de materiais não-originários incorporados em materiais intermediários que tenham origem (os materiais não-originários incorporados em materiais intermediários tem o seu valor absorvido e considerado como originário no produto final).


Neste contexto, é interessante o comparativo com o Acordo Norte Americano de Livre Comércio (NAFTA), que possui as regras de origem mais elaboradas e detalhadas existentes no setor automotivo. Uma das principais razões que gerou complexidade e alto grau de detalhamento quando da formação das regras do NAFTA foi o receio norte americano de que as indústrias do setor realocariam sua produção no México em razão do baixo custo, e se aproveitariam das preferências tarifárias, competindo diretamente com a indústria doméstica dos EUA. Assim, foram introduzidas regras de rastreamento de partes e peças não originárias, de maneira que o valor de transação das partes e peças é calculado e acumulado até a determinação da origem do produto final, ou seja, ainda que as partes e peças não originárias sejam incorporadas em um material intermediário considerado originário, o valor delas será computado no cálculo do Valor de Conteúdo Regional (VCR) do produto final; sendo que é exigido um mínimo de conteúdo regional de 50%, calculado o VCR para produtos automotivos com base nos custos (net costs)[4] e não no valor de transação.


Em relação à cumulação, nos acordos de livre comércio assinados pelo EUA não há previsão para regras de cumulação, enquanto nos acordos da UE há certa ênfase para as várias formas de cumulação (bilateral, regional ou diagonal), implementadas de forma gradativa, demonstrando maior tendência da UE para liberalização das normas e estímulo às integrações regionais.


Já o Mercosul, que ainda não é uma união aduaneira de fato[5], possui inúmeras regras de origem no setor automotivo, tanto entre seus membros como também em Acordos de Complementação Econômica (ACE) com não-membros, por exemplo, México (ACE 55) e Chile (ACE 35). Com exceção do Acordo de Complementação Econômica n° 55 firmado entre Mercosul e México exclusivamente para tratar do setor automotivo, todos os acordos intra-regionais ou inter-regionais do Mercosul possuem protocolos específicos para tratar dos critérios de origem  dos produtos automotivos. As regras gerais para obtenção de origem no Mercosul são comuns (Regime de Origem Mercosul), tendo como base o Anexo ao  Acordo de Complementação Econômica n. 18. No entanto, o setor automotivo possui inúmeras exceções e requisitos especiais que traduzem a importância do setor para o Brasil e Argentina.


As regras variam de acordo com o estágio de desenvolvimento do setor em cada país, sendo em geral mais rigorosas para o Brasil, intermediárias para a Argentina e mais flexíveis para o Uruguai.[6] Conforme mencionado, os acordos intra-zona tem o objetivo de gradualmente implementar uma Política Automotiva do Mercosul, por isso a importância do equilíbrio nas relações comerciais entre os membros e a consideração das particularidades da indústria automotiva de cada um dos países membros. Um exemplo desta diferenciação, até em acordos inter-regionais, são os termos negociados no ACE 55 com o México, em que os índices iniciais mínimos de Valor de Conteúdo Regional exigidos para obtenção de origem nas exportações para o México são de 60% para o Brasil, 50% para a Argentina e 30% para o Uruguai.


A regra básica do Mercosul para determinação da origem é a mudança na classificação tarifária (salto de posição). Caso não haja mudança tarifária, o produto deverá ter um Índice de Conteúdo Regional mínimo de 60% do valor produto final, isto é, o valor CIF dos produtos não originário utilizados poderão representar no máximo 40% do valor FOB do produto manufaturado. No entanto, para o setor automotivo, a maioria das regras se encontram em uma lista de requisitos mínimos de transformação e processamento para obtenção de origem, as quais requerem em geral, além do salto na posição da classificação tarifária, também o valor mínimo de conteúdo regional igual a 60%. Lembrando que para os acordos bilaterais intra-zona entre Brasil, Argentina e Uruguai, estes requisitos variam, sendo progressivamente menos restritivos e prevendo cumulação total para o conteúdo regional.


Portanto, após esta breve análise comparativa entre as principais regras de origem do setor automotivo da União Européia, NAFTA e Mercosul, fica clara a dificuldade de encontrada pela indústria automotiva em suas operações de comércio exterior, na alocação da produção e, principalmente, nas suas decisões de investimento, pois a falta de transparência, previsibilidade e estabilidade é fruto da colcha de retalhos que as regras de origem preferenciais formam em cada área de livre comércio e que estão longe de serem harmonizadas em relação ao setor automotivo. Cada região tem uma postura e um interesse político econômico diferente, sendo as normas da União Européia as mais tendentes à liberalização dos mercados intra-regionais.








[1]
Para detalhes sobre os processos produtivos mínimos gerais de cada produto consultar: http://ec.europa.eu/taxation_customs/customs/customs_duties/rules_origin/preferential/article_779_en.htm


[2]
Para detalhes sobre o acordo da UE com o México consultar:

http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=OJ:L:2000:245:0001:1168:EN:PDF


[3]
Grande parte dos produtos do setor automotivo possuem alternativas nas restrições de conteúdo não originário, variando entre 40% e 25% do valor ex-fábrica do produto a ser manufaturado.


[4]
Net costs é a soma de todos os custos de produção, subtraídos os custos de promoção de venda, royalties, transporte e embalagem e juros não descontados.


[5]
Apesar de os países-membro do Mercosul adotarem a Tarifa Externa Comum, há diferenças tarifárias em processo de convergência; tampouco pode-se dizer que há livre circulação de mercadorias, ou um código aduaneiro comum vigente, elementos essenciais para a constituição e operacionalização de uma união aduaneira.


[6]
Não há indústria automotiva no Paraguai, motivo pelo qual não há qualquer restrição em relação a este país-membro.

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