PL do Carf: parecer é criticado por prever condições mais benéficas a litigantes
Parte dos especialistas, porém, defende que parecer do relator equilibrou necessidades de contribuintes e governo
Apresentado no início da semana, o parecer do deputado Beto Pereira (PSDB-MS), relator do Projeto de Lei (PL) 2384, que restabelece o voto de qualidade (voto de minerva do presidente da turma) no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), não é consenso entre tributaristas. Os especialistas divergem sobre a derrubada da multa e juros e as facilidades de pagamento para os contribuintes derrotados com a aplicação da regra de desempate.
Enquanto alguns tributaristas apontam que os litigantes terão mais vantagens do que quem pagou o tributo em dia, o que poderia, inclusive, levar a um aumento do contencioso, outros entendem que a proposta equilibrou as necessidades do governo e dos contribuintes.
Além do perdão de juros e multas nos processos decididos por voto de qualidade, o parecer do relator concede 90 dias para o contribuinte propor um acordo de pagamento do valor principal sem a incidência de juros. O pagamento poderá ser realizado de forma parcelada em até 12 meses, com uso de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL).
Beto Pereira ainda manteve em 60 salários mínimos o limite de alçada para que os contribuintes possam recorrer ao Carf em caso de derrota nas Delegacias da Receita Federal (DRJs). O texto original do PL, que pode ser votado nesta quarta (5/7), havia elevado o limite para mil salários mínimos.
Para Carlos Daniel Neto, sócio do Daniel & Diniz Advocacia Tributária, a derrubada de juros e multas e as condições benéficas de pagamento para contribuintes que perderam pelo voto de qualidade criam uma distorção, já que quem optou pelo litígio terá mais benefícios do que quem pagou o tributo em dia e também do que quem fez a chamada denúncia espontânea.
A denúncia espontânea, prevista no artigo 138 do Código Tributário Nacional (CTN), ocorre quando o contribuinte reconhece um débito e faz o pagamento integral antes do início de quaisquer procedimentos de fiscalização. Nesse caso, são afastadas as multas, e o contribuinte arca apenas com os juros de mora.
Carlos Daniel Neto destaca que as condições previstas no PL para os contribuintes que perderem por voto de qualidade no Carf são mais vantajosas, pois há perdão dos juros e há possibilidade de parcelar o pagamento, enquanto, para a caracterização da denúncia espontânea, é exigido o pagamento integral do valor devido ao fisco.
“Sinceramente, acho [a medida] muito ruim. O contribuinte que pagou espontaneamente não pode estar em uma situação pior do que o contribuinte que se atrasou e depois pagou, como ocorre na denúncia espontânea, e quem fez a denúncia espontânea não pode estar pior do que a pessoa que litigou e perdeu, ainda que por voto de qualidade”, avaliou o tributarista.
Para Neto, a vantagem concedida aos contribuintes derrotados por voto de qualidade no Carf pode, inclusive, incentivar o litígio, sobrecarregando o tribunal e elevando o estoque de casos, no sentido contrário do objetivo do governo de desafogar o órgão. “Eu acho que a tendência, com essas regras, é aumentar o litígio. É também um incentivo para as empresas serem mais arrojadas em planejamentos tributários, principalmente em situações controversas e que geram voto de qualidade [no Carf]. Um exemplo é a amortização de ágio interno”, comentou.
“Refis”
A advogada Maria Danielle Rezende de Toledo, sócia do Lira Advogados, também considera controverso o perdão de juros e multas e as condições benéficas de pagamento para os derrotados pelo voto de qualidade no Carf.
“A gente vê um projeto de lei que pretende fazer uma atualização, correções dentro do processo administrativo fiscal, trazendo praticamente um ‘Refis’. Isso vai ser ad eternum? Vai ser uma legislação que vai permanecer? Se houver uma mudança no cenário econômico, isso [facilidades de pagamento] vai se modificar?”, questiona.
Para a advogada, o projeto de lei não é o instrumento adequado para implementar esse tipo de medida. Em sua avaliação, a possibilidade de negociação de débitos tributários deveria ser prevista em edital, com duração pré-determinada das condições mais benéficas. “Me parece muito insegura uma situação dessas, modificando a lei, trazendo esse tipo de expectativa para quem perder. Você estimula a pessoa a deixar para pagar mais para frente, pois vai ter um benefício melhor”, avalia.
Porém, para Gisele Bossa, ex-conselheira do Carf e sócia tributária do Demarest, o perdão de multas e juros e pagamento facilitado em caso de derrota por voto de qualidade no tribunal têm aspectos positivos e negativos. “Se você olhar sob o prisma econômico, da arrecadação, e sob o prisma da manutenção da atividade empresarial do contribuinte em um momento de crise, eu acho a medida positiva. A externalidade negativa é que você premia o contribuinte que não pagou em dia, em detrimento daquele que comprometeu o caixa para pagar o tributo”, admite.
A advogada também considerou positiva a manutenção do limite de alçada a partir de 60 salários mínimos para recorrer ao Carf após derrota nas Delegacias da Receita Federal (DRJs). “[Com o limite de mil salários mínimos da proposta original] o pequeno contribuinte iria parar de ter acesso ao Carf. Dizer que casos abaixo de mil salários mínimos não têm complexidade é muito relativo. A gente não pode cercear o direito de defesa de contribuintes que são hipossuficientes”, defende.
A advogada Thabitta Rocha, do Martinelli Advogados, também considerou as mudanças positivas. “O limite de 60 salários mínimos é ótimo, pois acaba permitindo que os contribuintes com menos renda, menor capacidade contributiva, tenham acesso ao contraditório e à ampla defesa em todas as esferas”, avaliou. Além disso, para a advogada, o perdão de juros e multas e as condições facilitadas de pagamento em casos resolvidos a favor do fisco por voto de qualidade equilibra as necessidades dos contribuintes e do governo.
"O governo, que precisa de caixa, recebe de imediato. Já o contribuinte, se as provas não são muito viáveis [para recorrer à Justiça], já decide regularizar a situação. Se [o processo] foi decidido por empate, existe uma dúvida [sobre a tese jurídica]. E o governo, em vez de levar cinco anos, dez anos [discutindo o débito], recebe aquele valor na hora", conclui.
Auditores são contra parcelamento
O Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Sindifisco) se manifestou por meio de nota sobre o parecer do relator. Segundo a entidade, o texto "acerta ao manter o restabelecimento do voto de qualidade, essencial em termos de justiça fiscal e arrecadação". Porém, o Sindifisco critica "a inclusão no texto de um novo parcelamento tributário, ou seja, mais uma espécie de Refis".
Segundo a entidade, desde os anos 2000 já foram lançados sete programas de parcelamento de dívidas tributárias "privilegiando o sonegador em detrimento do pagador de impostos". Conforme o sindicato, o efeito dos últimos Refis no montante das receitas administradas pela Receita Federal é baixo, tendo ficado em 0,52% em 2022 e em 0,49% de janeiro a maio de 2023.
De acordo com o Sindifisco, esse tipo de programa "cria distorções econômicas e estabelece padrões de comportamento importantes e com efeitos de longo prazo sobre a arrecadação".