Portaria MF 20 e impactos no litígio administrativo
Implantar a eficiência no contencioso administrativo tributário é fundamental, mas tais mudanças não podem ser feitas contrariando legislação hierarquicamente superior
Bárbara Bach Yuna YamazakiNo início do ano foi publicada a Portaria MF nº 20/2023 que promoveu mudanças relevantes no fluxo processual do contencioso tributário e aduaneiro da Receita Federal a partir de 3 de abril, passando para a alçada das Delegacias da Receita Federal do Brasil de Julgamento (DRJs) - órgãos de julgamento compostos exclusivamente de auditores - a competência para julgamento de recursos que até então eram julgados pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), tribunal administrativo com paridade de julgadores representantes do Fisco e dos contribuintes.
A novidade legislativa veio em continuidade com as alterações iniciadas pela Lei nº 13.988/2020 (Lei do Contribuinte Legal), que estabeleceu que o chamado “contencioso administrativo de pequeno valor” poderia ter um rito diferenciado, a depender de regulamentação da União.
Essa primeira regulamentação veio pela Portaria ME nº 340, publicada também em 2020, que definiu que, nesses casos de pequeno valor, recursos em face dos acórdãos das DRJs passariam a ser julgados por Câmaras Recursais das próprias DRJs, em última instância.
Entre as medidas do novo governo, foi publicada a Medida Provisória (MP) nº 1.160/2023 que introduziu o conceito de “contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade” na Lei do Contribuinte Legal para as autuações que não superem mil salários mínimos.
Contudo, a Portaria MF nº 20/2023 foi ainda além, estabelecendo que os casos envolvendo menos de 60 salários mínimos ou considerados de baixa complexidade (entre 60 e 1.000 salários mínimos) serão decididos por decisão monocrática, cabendo recurso para a própria DRJ, que o decidirá de maneira colegiada. Somente nos casos envolvendo mais de 1.000 salários mínimos caberá recurso voluntário ao Carf em face da decisão da DRJ.
Na prática, considerando o valor do salário mínimo atualmente vigente de R$ 1.320,00, todos os litígios com valor abaixo de R$ 1.320.000,00 serão julgados exclusivamente por auditores da Receita Federal.
A alegação da União para promover essas mudanças é que, com base nos princípios da racionalidade, da economicidade e da eficiência, é preciso reduzir a quantidade de casos pendentes de julgamento no Carf - dos cerca de 90.600 casos que estão registrados no acervo do Conselho, cerca de 64.600 (71% do total) serão julgados pelas DRJs, segundo dados abertos do Carf de 24 de fevereiro.
De outro lado, as alterações promovidas, na prática, prejudicam a defesa do contribuinte. Um exemplo é a previsão de sustentação oral em recursos apenas de maneira gravada e enviada com antecedência - não se nega ser uma ferramenta, mas não pode substituir as sustentações presenciais que podem ser mais decisivas para os contribuintes, por se tratar de momento no qual é possível esclarecer dúvidas dos julgadores sobre questões de fato, além de reforçar as teses de defesa.
Outros pontos de crítica são a ausência de previsão legal sobre a possibilidade de audiências prévias com os julgadores das DRJs e a deficiência de publicidade dos julgamentos, que serão virtuais e sem abertura ao público - até então havia procedimentos que permitiam a solicitação de audiência com quaisquer dos conselheiros julgadores, bem como a transmissão e gravação das sessões de julgamento que ficavam disponíveis na internet. Além dos prejuízos à transparência, o amplo acesso às sessões de julgamentos permitia o estudo mais detalhado da posição de cada julgador e a definição de estratégia na elaboração dos recursos e memoriais, além de direcionamentos na sustentação oral.
Há também preocupação em razão dos julgadores serem somente auditores, o que elimina o julgamento paritário e o troca por uma notória tendência pró-Fisco na análise - as DRJs, na prática, dificilmente acatam impugnações apresentadas pelos contribuintes, mesmo nos casos com jurisprudência contrária do Carf.
Ademais, a Portaria MF nº 20/2023 incorre em ilegalidade ao extrapolar os limites do texto da Lei do Contribuinte Legal e do Decreto nº 70.235/1972, que não preveem ritos especiais para casos abaixo de 1.000 salários mínimos, nem determinam o conceito de “contencioso administrativo fiscal de baixa complexidade”, o qual foi introduzido através da MP nº 1.160/2023.
Há que se destacar que o referido conceito poderá ser prejudicado a depender da tramitação da MP nº 1.160/2023 que precisaria ser deliberada pelo Congresso Nacional até o próximo dia 1º de junho. Apesar das baixas expectativas de análise no citado prazo, o governo federal evidencia querer insistir na pretensão ante a apresentação do Projeto de Lei nº 2384/2023 no início de maio.
Além disso, o Acordo sobre a Facilitação do Comércio (AFC) estabelece que os operadores do comércio exterior possuem direito de recurso à instância administrativa superior ou independente da autoridade ou repartição que tenha emitido a decisão, o que não ocorre quando o recurso é analisado pela mesma DRJ, sem paridade de julgadores nomeados pelo Fisco e pelos contribuintes.
Implantar a eficiência no contencioso administrativo tributário é fundamental. Contudo, tais mudanças não podem ser feitas contrariando legislação hierarquicamente superior, nem suprimindo direitos dos contribuintes que garantem o contraditório e ampla defesa, o que poderá levar a uma maior judicialização dessas questões.
Bárbara Bach e Yuna Yamazaki são, respectivamente, advogada especialista em direito tributário contencioso e aduaneiro e sócia da área de Litigation da Lira Advogados; e advogada especialista em direito aduaneiro e sócia e head da área de Customs Law da Lira Advogados
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