Livre Circulação de Bens – O aperfeiçoamento do Mercosul como União Aduaneira

Publicado em: 31/08/2010

Alexandre Lira de Oliveira



A divulgação das Decisões do Conselho do Mercado Comum [1] (CMC) 10 e 27, aprovadas pela Cúpula de San Juan aos 2 e 3 de agosto desse ano de 2010, surpreenderam e encheram de otimismo os entusiastas do Mercosul. Contudo, devemos analisar pragmaticamente os recentes avanços obtidos, evitando contagiarmo-nos por euforia que possa causar uma politização das discussões e alimentar o clamor demonstrado pela conclusão de forma prematura de tão importante negociação multilateral quanto é a que vem ocorrendo entre Mercosul e Comunidade Europeia.


Além de demonstrar o contexto normativo da matéria de eliminação da múltipla cobrança da Tarifa Externa Comum (TEC) [2] desde 2004, no presente artigo faremos a análise prática dos reais avanços obtidos com as recentes normas veiculadas pelas decisões do órgão superior do Mercosul, expondo quais as etapas cujo cumprimento será necessário para que possa haver a efetiva livre circulação de bens e possa assim ser reconhecida a união aduaneira em sua perfeição, conforme idealmente desenvolvida pela doutrina, comparativamente com outras uniões aduaneiras existentes e como comentado por textos do próprio Mercosul.


A Decisão CMC 10/10 estabelece a retomada dos trabalhos para eliminação da múltipla cobrança da TEC, sendo a grande iniciativa nessa frente desde o ano de 2005, quando foi aprovada a Decisão CMC 37, que consistiu na implantação "em uma primeira etapa (de) um regulamento para o controle e a comercialização entre os Estados Partes dos bens que receberão o tratamento de originários, em conformidade com o disposto na Decisão CMC no 54/04. [3]"


Sendo até hoje o grande marco na busca pela eliminação da múltipla cobrança, a Decisão CMC 54/04 [4] estipulou um plano de trabalho com requisitos a serem cumpridos para implantação da eliminação da multiplicidade da cobrança da TEC em operações em que haja a movimentação de cargas por mais de um Estado Parte.


Logo no ano seguinte, foi acordada a Decisão CMC 37/05, permitindo o tratamento de originários do Mercosul aos bens importados de terceiros países sempre que a eles seja aplicável (i) a TEC à alíquota zero em todos os Estados Partes e (ii) preferência tarifária irrestrita de 100% decorrentes de acordos de livre comércio celebrados pela nos Estados Partes.


Para controle desses requisitos foi criado o Sistema Indira, que permite às Administrações de Aduanas dos Estados Partes consultar em tempo real as informações contidas nas declarações de exportação do Bloco, que, desde julho de 2006 contêm campos específicos para controle do "Certificado de Cumprimento da PTC" (CCPTC) e "Certificado de Cumprimento do Regime de Origem Mercosul" (CCROM).


Apesar de restrita a bens que não sofrem gravame tributário na importação, a eficácia da Decisão 37/05 simbolizou à época um grande passo na busca da eliminação da cumulatividade tarifária na circulação de bens pelo Mercosul, exatamente pela tempestiva adoção das prescrições contidas no artigo 2o da Decisão CMC 54/04.


Contudo, depois da execução da primeira etapa – que concentrou os bens de extra-zona tarifados pela TEC à alíquota zero e com 100% de preferência tarifária – os esforços pela busca da livre circulação de bens arrefeceram-se, havendo um vácuo de inovações normativas até o momento atual.


Com a publicação da Decisão CMC 10/10 foi fixado um rigoroso cronograma para eliminação da dupla cobrança da TEC no Mercosul. Foi estabelecido que até o início de 2012 deverá ser cumprida a primeira etapa do plano de trabalho, consistente na eliminação da múltipla cobrança da TEC para bens que circulem sem transformação industrial por países.


Até 2014 deverá ser eliminada a cumulatividade tributária para bens importados de extra-zona gravados com a TEC de 2% e 4% incorporados a produtos fabricados no Mercosul. Para o restante dos bens incorporados a processos produtivos, o CMC definirá a data para entrada em vigência desta etapa antes de 31 de dezembro de 2016, que deverá estar em funcionamento no mais tardar em 1° de janeiro de 2019.


Para encadeamento dos controles necessários para funcionamento da sistemática, foi previsto desde 2004, pelo artigo 4o da Decisão CMC 54, a necessidade de cumprimento de três requisitos básicos, consistentes na (i) aprovação do Código Aduaneiro do Mercosul, (ii) interconexão dos sistemas informativos de gestão aduaneira dos Estados Partes e (iii) criação de mecanismo de distribuição da renda aduaneira.


Com a recente aprovação do Código Aduaneiro do Mercosul pela Decisão CMC 27/10 e a existência da interconexão de informações públicas aduaneiras pelo Sistema Indira nos termos da Decisão CMC 37/05, deverá ser fixado mecanismo de distribuição da renda aduaneira até o final de 2011 para cumprimento do prazo previsto para eliminação da múltipla cobrança da TEC na circulação de bens pelo MERCOSUL.


Diante do exposto, para avançar no desenvolvimento desse artigo, devemos tratar uma questão terminológica. Neste texto, temos classificado o tema tratado pelas Decisões CMC 54/04, 37/05 e 10/10 como eliminação da múltipla [5] cobrança da TEC na circulação de bens pelos países do Mercosul e distribuição de renda aduaneira. Contudo, há uma ideia generalizada de que essas medidas irão resultar na livre circulação de bens no Mercosul, confirmando a união aduaneira. Essa ideia é equivocada.


Desde o Tratado de Assunção, marco inicial do Mercosul, a livre circulação de bens é tratada como uma implicação necessária ao Bloco. Como "livre circulação" deve ser entendida a exclusão de todas as barreiras que prejudicam o tráfego de mercadorias, sejam elas de natureza tributária, aduaneira ou qualquer outra.


Dessa forma, a eliminação da múltipla cobrança da TEC consiste num dos dois grandes passos necessários para a livre circulação de bens no Mercosul, sendo o segundo deles a eliminação das barreiras aduaneiras. Atualmente, e enquanto não forem executadas as duas medidas, o Mercosul não pode ser considerado como união aduaneira, sendo, no máximo, uma união aduaneira imperfeita.


Essa definição "união aduaneira imperfeita" foi criticada recentemente por artigo do Dr. Félix Peña publicado no jornal argentino "La Nación" [6], de 10 de agosto de 2010. Afirma o jurista que qualificar o Mercosul dessa forma equivale a demonstrar desconhecimento das normas da Organização Mundial de Comércio (OMC), que dizer que o Mercosul é uma "união aduaneira imperfeita" demonstra desconhecimento do mundo real, que o Mercosul assim como a União Europeia não responde a nenhum modelo doutrinário nem deve seguir exemplos de outras regiões.


Em que pese o profundo respeito que temos por jurista de tamanha projeção e credibilidade mundial, temos que discordar dessas afirmações em alguns aspectos.


No que tange às normas da OMC entendemos que o Art. XXIV, 8 a) [7] do Acordo Geral de Tarifas e Comércio (GATT) estabelece que a união aduaneira não conterá tarifas e outras restrições ao comércio entre os Estados Partes. No caso do Mercosul existem restrições tarifárias e aduaneiras.


Ainda que em fase de eliminação, como ventilado aqui, a existência de multiplicidade da cobrança da TEC na circulação de bens e o tratamento do comércio entre os Estados Partes como operações de importação e exportação, sendo exercido o controle aduaneiro pela regra geral de fiscalização invasiva, conforme preconiza o artigo 178, 1., do Código Aduaneiro do MERCOSUL (CAM) [8], confirma a imperfeição do Bloco como "união aduaneira", conforme preconizado pelo GATT.


Referentemente a afirmação de que desconhece o mundo real quem critica o estágio atual do Mercosul e demanda medidas mais eficazes de integração, também temos que discordar. A eliminação do uso da regra geral de fiscalização invasiva – que exige por exemplo que um exportador no Brasil tenha que emitir um registro de exportação, submeter-se à aduana brasileira, para aí então o importador argentino registrar uma declaração de exportação e ter que aguardar o desembaraço aduaneiro pela aduana argentina – seria um avanço muito grande na integração de mercados e desenvolvimento da complementaridade industrial.


No mundo real existem acordos internacionais que permitem a livre circulação de bens sem a imposição de tarifas e outras restrições ao comércio, como a fiscalização aduaneira na mudança do território aduaneiro de um país para outro do Bloco. É assim que funciona o comércio de mercadorias na Comunidade Europeia.


Finalizando as críticas ao artigo publicado pelo professor Félix Peña, comentamos a afirmação de que "el Mercosur no responde a ningún modelo de libro de texto ni de otras regiones". Ainda em 1961, o húngaro Bela Balassa escreveu o livro "The Theory of Economic Integration" [9] em que desenvolveu arquétipos sobre os possíveis graus de integração em blocos econômicos, que vão desde áreas de livre comércio –como é o caso do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (NAFTA) –, uniões aduaneiras – como da União Aduaneira do Sul da África (SACU) – até uniões econômicas e completas integrações econômicas – como é o estágio atual da Comunidade Europeia (CE) [10].


O exemplo utilizado para demonstrar o papel de modelos teóricos na integração entre países é também uma forma de demonstrar o papel da doutrina como fonte do direito positivo. Bela Balassa anteviu em sua obra eventos que somente viriam a se materializar depois de sua morte, contribuindo assim para que seu nome se tornasse imortal.


Entendo que o Mercosul, embora sem qualquer vinculação, deve sim espelhar-se em situações vivenciadas por outros blocos econômicos, afinal, é para aprendermos com o ocorrido com a humanidade que estudamos a história.


Além da confirmação doutrinária, do direito comparado e da demonstração dos prejuízos causados pela inexistência da livre circulação de bens no Mercosul, também em normas expedidas pelo CMC encontramos o reconhecimento de que nossa união aduaneira está em formação, sendo atualmente, portanto, imperfeita.


Exemplos do reconhecimento da "imperfeição" são encontrados na Decisão CMC 10/10 – "até a conformação definitiva da União Aduaneira, a arrecadação aduaneira será efetuada por cada Estado Parte" – ou na Decisão CMC 54/04, que define o Mercosul como união aduaneira imperfeita ao estabelecer "que o objetivo de aperfeiçoamento da União Aduaneira implica avançar no que se refere a normas e procedimentos que facilitem tanto a circulação quanto ao controle dentro do Mercosul dos bens importados no território aduaneiro ampliado".


É importante pacificar o entendimento de que o Mercosul é uma união imperfeita, pois assim a todos fica claro que há muito trabalho a ser feito. A livre circulação de mercadorias – assim compreendido não somente o fim da multiplicidade da cobrança da TEC mas, tão importante quanto essa, a eliminação da conferência aduaneira de mercadorias transacionadas entre Países Partes – é um requisito para desenvolvimento do Mercosul e de todos os seus sócios.


O fim da conferência de mercadorias no comércio intra-zona é previsto no CAM. Conforme a segunda parte do artigo 178 [11], é determinado que o controle aduaneiro será exercido por documento aduaneiro unificado. Este documento foi criado pela Decisão CMC 17/10 e é chamado de "Documento Único Aduaneiro do Mercosul" (DUAM).


Com a adoção dos controles previstos e necessários, que poderá ser implantada em médio prazo se houver vontade política, será possível ao Mercosul tornar-se uma união aduaneira. A utilização do DUAM para controle do comércio havido entre os Países Partes possibilitará a eliminação da fiscalização invasiva no comércio exterior intra-zona, principalmente depois de implantado o órgão único de arrecadação aduaneira, necessário para desenvolvimento da união aduaneira, conforme previsto pela Decisão CMC 10/10 [12].


Torçamos para que haja a vontade política para criação da União Aduaneira do Mercosul, seguindo o modelo de Bela Balassa, pois os ganhos envolvidos com a integração de mercados e cadeias nos países do Mercosul são muito mais valiosos do que, por exemplo, um acordo com a Comunidade Europeia precipitadamente negociado, que não possa analisar detidamente a realidade de cada setor econômico do Mercosul.


Antes de um grande passo como um abrangente acordo com a CE, precisamos resolver nossa necessidades internas. Além da necessidade de melhoria das deficiências tributárias, estruturais, regulatórias e financeiras existentes nos países do Mercosul, também a implantação da livre circulação de bens é um requisito necessário para o desenvolvimento econômico e social.

 

 



[1] O Conselho do Mercado Comum é o órgão superior do MERCOSUL incumbido da condução política do processo de integração e da tomada de decisões para assegurar o cumprimento dos objetivos estabelecidos pelo Tratado de Assunção e atingir a constituição final do mercado comum. O Conselho do Mercado Comum regerá por meio de Decisões que serão obrigatórias para os Estados Partes.
http://www.mercosur.int/t_generic.jsp?contentid=484&site=1&channel=secretaria&seccion=5


[2] Como "múltipla cobrança da TEC" é chamada a possibilidade existente na legislação do Mercosul de um bem ser gravado mais de uma vez com o pagamento da TEC caso circule por diversos países do Bloco.


[3] Decisão CMC 37/05


[4] Sobre as Decisões CMC 54/04 e 37/05 confiram meu artigo "Eliminação da dupla cobrança da tarifa externa comum e distribuição da renda aduaneira no mercosul" de 21 de agosto de 2006, em https://www.liraatlaw.com/index.php?option=com_content&view=article&id=29%3Aeliminacao-da-dupla-cobranca-da-tarifa-externa-comum-e-distribuicao-da-renda-aduaneira-no-mercosul&catid=2%3Aartigos&Itemid=13?=pt


[5] Considero equivocado o tratamento do tema como "dupla cobrança da TEC" – conforme usado pelas normas do Mercosul – tendo em vista que a incidência tributária pode ocorrer mais de duas vezes com a circulação de bens pelos Estados Partes.


[6] Es un proceso continuo sin punto final ni garantía de irreversibilidad. Al igual de lo que es evidente hoy con la Unión Europea, el Mercosur no responde a ningún modelo de libro de texto ni de otras regiones. Es, como debe ser: un intento de trabajo conjunto entre un grupo de países, que procura responder a peculiaridades, intereses y realidades propias de esta región.

En la práctica, no es fácil lograrlo y, por ello, siempre parecerá incompleto y distante de cualquier idealización. Incluso el calificativo de "imperfecta", que se suele utilizar en el plano académico con respecto a la unión aduanera que aspira a completar el Mercosur, puede estar señalizando dificultades para entender cómo es el mundo real o una falta de lectura adecuada de las normas que en el marco de la Organización Mundial del Comercio definen lo que ellas entienden por tal modalidad de integración de mercados.


[7] 8. For the purposes of this Agreement:
(a) A customs union shall be understood to mean the substitution of a single customs territory for two or more customs territories, so that

  1. duties and other restrictive regulations of commerce (except, where necessary, those permitted under Articles XI, XII, XIII, XIV, XV and XX) are eliminated with respect to substantially all the trade between the constituent territories of the union or at least with respect to substantially all the trade in products originating in such territories, and,
  2. subject to the provisions of paragraph 9, substantially the same duties and other regulations of commerce are applied by each of the members of the union to the trade of territories not included in the union;

 


[8] Artigo 178 – Circulação de mercadorias entre os Estados Partes

  1. Durante o processo de transição até a conformação definitiva da União Aduaneira:
    a) o ingresso ou a saída de mercadorias de um Estado Parte para outro serão considerados como importação ou exportação entre distintos territórios aduaneiros; e
    b) tanto as mercadorias originárias quanto as mercadorias importadas de terceiros países poderão circular entre os Estados Partes nos termos estabelecidos nas normas regulamentares e complementares.
  2. A circulação de mercadorias entre os Estados Partes se efetivará a partir da implementação conjunta de um documento aduaneiro unificado, preferencialmente eletrônico, de acordo com o estabelecido nas normas regulamentares e complementares.

 


[9] The Theory of Economic Integration. Contributors: Bela Balassa - author. Publisher: R.D. Irwin. Place of Publication: Homewood, IL. Publication Year: 1961.


[10] Economic integration, as defined here, can take several forms that represent varying degrees of integration. These are a free-trade area, a customs union, a common market, an economic union, and complete economic integration. In a free-trade area, tariffs (and quantitative restrictions) between the participating countries are abolished, but each country retains its own tariffs against nonmembers. Establishing a customs union involves, besides the suppression of discrimination in the field of commodity movements within the union, the equalization of tariffs in trade with nonmember countries. A higher form of economic integration is attained in a common market, where not only trade restrictions but also restrictions on factor movements are abolished. An economic union, as distinct from a common market, combines the suppression of restrictions on commodity and factor movements with some degree of harmonization of national economic policies, in order to remove discrimination that was due to disparities in these policies. Finally, total economic integration presupposes the unification of monetary, fiscal, social, and countercyclical policies and requires the setting-up of a supra-national authority whose decisions are binding for the member states.


[11] 2. A circulação de mercadorias entre os Estados Partes se efetivará a partir da implementação conjunta de um documento aduaneiro unificado, preferencialmente eletrônico, de acordo com o estabelecido nas normas regulamentares e complementares.


[12] Em geral, e até a conformação definitiva da União Aduaneira, a arrecadação aduaneira será efetuada por cada Estado Parte.

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